Aferradas à estratégia monopolista de vender o máximo de unidades no mínimo de títulos - a poderosa Warner Music Brasil tem em seu cast apenas 14 artistas, entre bons, regulares, ruins e péssimos -, as cinco multinacionais que controlam a indústria fonográfica no país (Warner, Sony, BMG, Universal e Emi), pagam para que suas gravações sejam marteladas até a saturação nas emissoras de rádio e televisão, em detrimento do variado repertório musical nacional de qualidade, favorecendo a ação dos piratas que só viceja em ambiente de demanda altamente concentrada
Em seu relatório de 2003, a ABPD (Associação Brasileira de Produtores Discográficos) informou que, em 2002, a venda de CDs piratas, no Brasil, atingiu a cifra de 115 milhões de unidades. Diz ainda o relatório que esse número correspondeu a 59% do total de CDs vendidos. E assegura que tal fato é responsável pela crise que atravessa o nosso mercado musical.
A crise é real e aguda. De 6º lugar no ranking mundial de venda de discos, o Brasil caiu para 13º, sendo ultrapassado por países de reduzida tradição musical como a Austrália. Essa queda não se deve apenas à expansão mais lenta do mercado nacional em relação aos demais. De 1998 a 2002 o faturamento da indústria fonográfica despencou de R$ 1,4 bilhões para R$ 1 bilhão.
ESTRATÉGIA MONOPOLISTA
A explicação, porém, deixa muito a desejar.
Primeiro: A ABPD não diz e nem poderia dizer como obteve essa cifra de 115 milhões de CDs piratas. Trata-se de uma informação tão merecedora de crédito quanto a afirmação dos dirigentes das cinco multinacionais que a controlam – Warner, Sony, BMG, Universal e Emi – de que não pagam para que suas gravações sejam tocadas até a saturação nas emissoras de rádio e televisão.
Segundo: Ainda que o número correspondesse à realidade, seria necessário não omitir do relatório que o maior responsável pelo estímulo e promoção à venda de CDs piratas, no Brasil, é, exatamente, o uso e abuso do jabá pelas cinco gravadoras multinacionais.
Aferradas à estratégia monopolista de vender o máximo de unidades do mínimo de títulos, essas empresas cada vez mais reduzem e empobrecem o repertório musical martelado pelos meios de comunicação, favorecendo a ação dos piratas, cuja estratégia é idêntica.
BONS, REGULARES, RUINS E PÉSSIMOS
Não fosse o flagelo do jabá, a vasta riqueza, diversidade e qualidade pela qual a música brasileira conquistou reconhecimento internacional se imporia naturalmente aos meios de comunicação nacionais. A quantidade de CDs vendidos aumentaria, ainda que o número de peças por título, dos “campeões de vendas”, reduzisse. A diversidade de opções desestimularia a pirataria, que só viceja em ambiente de demanda altamente concentrada. Nosso sobrecarregado aparato policial poderia concentrar-se em prioridades de mais elevado coturno. A poderosa Warner Music Brasil (R$ 170 milhões de faturamento anual) não precisaria continuar submetida à vexatória situação de ter um cast composto por apenas 14 artistas – entre bons, regulares, ruins e péssimos. A BMG poderia substituir astros do naipe de Louro José e Swing & Simpatia por algo mais consistente.
NACIONAIS E INDEPENDENTES
Então, por que as multis seguem aferradas ao jabá, mesmo quando isso favorece os piratas que lhes garfam uma fatia do mercado?
Antes do advento da tecnologia digital, era impossível produzir um disco sem passar por uma gravadora. Só elas possuíam os estúdios de gravação e as misteriosas engenhocas que produziam as matrizes e cópias. Tais meios de produção complexos e caros, outrora, garantiam o controle sobre a produção de discos a quem tivesse e pudesse investir vultosos recursos para adquiri-los.
SUBORNO
Hoje, os estúdios de gravação e as empresas que copiam os CDs não estão mais necessariamente dentro das gravadoras. Estas deixaram de ter não só o monopólio sobre os meios de produção, como inclusive desativaram total ou parcialmente seus imponentes parques industriais. Os artistas passaram a ter como produzir seus discos fora das gravadoras. Criá-las deixou de ser um negócio oneroso, fortalecendo os portadores de cultura, inteligência e sensibilidade musicais em relação aos detentores do capital. Surgiram dezenas de gravadoras nacionais e centenas de artistas independentes cuja produção, tomada em conjunto, ultrapassou largamente a das cinco irmãs, tanto em qualidade quanto em quantidade. De janeiro a junho de 2004, para cada novo lançamento das majors, as independentes lançaram pelo menos cinco títulos.
Perdendo o controle sobre a oferta, as grandes gravadoras deslocaram o peso de seu poder econômico para açambarcar o espaço público da comunicação e manipular a demanda, a fim de manterem o monopólio sobre a venda de CDs. E não se detiveram ante o fato de terem que fazê-lo através do suborno, já que não há um meio legal de obter o mesmo resultado.
A prática generalizada do jabá trouxe em sua esteira a possibilidade de converter nulidades em “campeões de vendas”, pela superexposição de seus atributos na mídia comprada por debaixo dos panos. Qualidade e diversidade, marcas registradas da música brasileira, foram substituídas pelo seu avesso, nos meios de comunicação e nas prateleiras das lojas. Os diretores artísticos das grandes gravadoras cederam lugar aos gênios do marketing. Os casts minguaram. E chegamos aos dias de hoje.
Warner, Sony, Universal, BMG e Emi lançam cada vez menos títulos e clamam aos céus contra os piratas – que conseguem expor numa minguada banquinha de camelô toda a formidável produção fonográfica de um ano inteiro, das cinco juntas. Mas recusam-se a abrirem mão do jabá, para não terem que competir de modo honrado com a produção das gravadoras nacionais e artistas independentes.
O que temem? Que essa renúncia possa levar Kelly Key a vender menos que Gal Costa? Que Almir Satter ultrapasse Os Detonautas? Que Beth Carvalho bata Os Travessos? Que Bethânia supere Babado Novo? Que o Quinteto em Branco e Preto atropele Os Mulekes? Que Geraldo Azevedo passe Pedro & Thiago? Que Rouge, Jota Quest, Marcelo D2, Ivete Sangalo, Carla Xibombom Cristina, Exaltasamba, Belo e outras crias do jabá sejam reduzidos à sua dimensão real? Que Sérgio Reis, Fagner, Walter Alfaiate, Johnny Alf, Alceu Valença, Nei Lopes, Tom Zé, Vital Farias, Armandinho, Elomar, Izaías do Bandolim, centenas de artistas expulsos dos casts das cinco multinacionais e outros tantos aos quais elas cerraram as portas possam tomar-lhes o mercado? Mas seus chairmen não acreditam no que dizem? Não são os especialistas em perceber e gravar a música que o povo quer ouvir?
Em entrevista concedida aos jornalistas Pedro Alexandre Sanches e Laura Mattos (maio de 2003), o sr André Midani, que exerceu vários cargos de chefia na indústria fonográfica, por mais de 40 anos, além de haver admitido a prática do crime, revelou que os “orçamentos publicitários” das cinco multinacionais variam “entre 12% e 16% das vendas” e que o jabá “chega a representar 70% das verbas publicitárias”.
FAVORECIMENTO
Considerando o faturamento das cinco, estamos diante de cifras que vão de R$ 71 milhões a R$ 95 milhões empregados anualmente nessa modalidade criminosa de marketing. Mas isso não é tudo. Em função de um convênio que absurdamente sobrevive até hoje, as cinco gravadoras multinacionais são favorecidas pela isenção de 40% do ICMS devido aos cofres públicos, o que lhes garante a bagatela de R$ 61 milhões para que as despesas com suborno não onerem em demasia seus custos de produção. Não há como fugir à didática conclusão de que, além de se constituir em prática corrupta e criminosa, exercida para eliminar a concorrência através da manipulação do mercado, o jabá tem sido patrocinado fundamentalmente por dinheiro público desviado de suas funções precípuas.
PIRATAS E PIRATAS
No Aurélio, a palavra pirata apresenta como sinônimos as expressões gatuno, espertalhão, tratante, malandro, ladrão. O termo, portanto, não serve apenas para caracterizar a rede de produção e comercialização de CDs falsificados. Também cabe perfeitamente para qualificar a ação realizada no Brasil pela Warner, Sony, Universal, BMG e Emi. Há, no entanto, duas diferenças. A ação dos primeiros não é pior, nem causa mais prejuízos à nossa cultura, naquilo que ela tem de mais expressivo, a música brasileira, do que a ação dos segundos. Extinguindo-se a pirataria dos maiores reduzir-se-ão significativamente os atrativos à pirataria dos menores, mas a recíproca não é verdadeira.
O Ministério Público, Polícia Federal, Ministério da Justiça, Ministério do Desenvolvimento, CADE, Ministério das Comunicações, Ministério da Cultura e Congresso Nacional devem levar isso em conta, para que não se estimule a pirataria a pretexto de combatê-la.
QUALIDADE ALIJADA
O que não se pode perder de vista é que não é justo, e sobretudo não é salutar ao desenvolvimento econômico e cultural do país, que gravadoras nacionais e artistas independentes, tendo lançado mais de 4.000 títulos diferentes de CDs, que contêm a maior parcela do que de melhor foi produzido nos últimos 10 anos em matéria de música brasileira, sigam alijadas do espaço público da comunicação e, conseqüentemente, das estantes das lojas pelo flagelo do jabá.
SÉRGIO RUBENS DE ARAÚJO TORRES (Jornal Hora do Povo)